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quarta-feira, 23 de março de 2011

Um Outono: Um Homem Chamado X

Um Homem chamado X andava contente com esses dias de outono. 
Chegava a exercitar piruetas na rua e a cantar em voz alta, ele, justo ele, um desses cidadãos que fazem de tudo e mais que o tudo para passarem quase invisíveis pelos outros, nas ruas, supermercados, bancos e todos esses lugares de filas e olhares furtivos. Aliás, como se rouba olhares nesses espaços de suposta indiferença. Suposta porque lhe parecia que todos negociavam sentidos, negociavam as coisas que não se fala, aquelas que chegam a ser comparativas. Um cabelo, um terno de linho, um vestido florido, uma armação de óculos elegante, um sapado clássico, cheiros essas coisas das modas que se vem e que se atravessam e entretecem no tempo, modas que são gostos ou que são tentativas de estar como forma. Sim, forma: essa mesma ideia que se usa para as discussões em arte.
X andava tão contente que ouvia rock´roll, rock´roll all nigth. Chegou a sair de casa num desses dias de segunda-feira com a empolgação de um show de Chuck Berry aos oitenta anos. E fez-se Elvis Presley mexendo sua pélvis como num coito apaixonado e selvagem. Deixou-se totalmente embebedar pelo corpo, queria corpo, corpo e mais corpo. Compor com todos os corpos, compor com materialidades e imaterialidades, Compor com aquele sol. Entrar no vento. Desfrutar do toque da chuva. Abraçar árvores. Sim, parou numa ruela para abraçar uma árvore, final de tarde, o sol a inundava de calor. Um corpo liso, ainda liso, junto, dentro daquela casca que pulsava. Encostou o ouvido no tronco e despediu-se com uma escutadela. 
Na saída, correu, correu, correu até perceber que precisava fazer alguma coisa, pois não tinha mais poucos anos. Percebeu também o quanto já tinha feito do corpo, mesmo naqueles dias de marasmo deitado à cama, embrutecido pela televisão. E que o corpo tinha limites, assim como tudo que não é levado a sério e investigado com paixão. Correu até sua casa e tirou toda roupa em frente ao espelho. Nú. 
Olhando-se nú.
Amando-se nú sem tocar em qualquer parte do corpo.
E mirou a mão, com os dedos... ora os dedos.... sempre, todo dia aquelas mãos a lhe lavar, lhe alimentar, lhe abrir a porta para o mundo, aqueles dedos agarrando cada momento para levá-lo adiate. Às vezes levá-lo de volta, levá-lo para memórias empoeiradas, guardadas num baú que fora a caixa de ferremantas de sua bisavó, sim, tivera uma bisavó afeita aos trabalhos com madeira, especialista em rastéis de seis dentes. Puxava tudo, diziam os que vieram depois no espaço-tempo.
Juntou as mãos em palma e entrelaçou os dedos, soltou-os para largar as lembranças dessa estranha que conhecia melhor que aos seus contemporâneos.
E olhando-se massageou o peito, carregando as mãos às costas e deixando-as escorregar até as nádegas. Ainda duras. As nádegas... passava por elas somente na hora de secar o corpo depois do banho, também quando a cadeira era dura ou o ônibus estava lotado. Mangas. Sentiu-se com mangas. Sentiu-se vulnerável à uma mordida. Desejoso de uma mordida. Mordida de boca vermelha, boca molhada. Largou os braços na extensão e tocou os quadris, massageou as pernas sem constrangimento e acariciou os dedos dos pés. Quanta bobagem, quanta prudência, quanto desconhecimento em relação ao próprio corpo.
E o pênis fervilhando com o sangue, aquele sangue ativado por uma beleza íntima de outono, uma beleza de vida: isso é quase tudo, pensou. 
E tocaram o interfone: não atendeu.
Continuaram tocando: olhou-se fixamente no espelho. Fixo nos olhos.
A campainha ritmada: de quem eram aqueles olhos? 
Ninguém em casa para atender a porta, somente um homem chamado x que dançava nú.