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sexta-feira, 1 de abril de 2011

Guerra

Estava sem lugar. Melhor: qualquer lugar me era indiferente. Cavoquei dentro de todos os espaços da memória algum sentido, mas uns sentidos não podem ser ativados pela memória, precisam de algo mais, precisam de acontecimentos. E nada acontecia. Só o nada acontecia. Noite e dia e tarde e olhares de cores fracas, tão fracas que era difícil pegar algum lampejo. Começei a assustar-me e fiquei triste, muito triste com o fato de passar pelas pessoas e elas estarem mortas. Semi-vivas, semi-mortas, quase alguma coisa que se move para a morte, porém que pára para a vida. Vontade de sacudir aqueles corpos pelos quais eu passava na rua. Cheguei a pensar que talvez fosse melhor não sair por um tempo. Ficar em casa com as minhas cadeiras dos anos cinqüenta, com minha geladeira vazia, cujo estômago elétrico roncava em tremores, tal qual o compasso das pontadas do meu estômago fatigado pela revolta. De qualquer forma eu tinha que trabalhar, o que significava que a opção de ficar com as coisas, somente com as coisas, estava proibida. Indignei-me porque grande parte da produção social contemporânea me joga para as coisas e quando decido estar com elas , afim de evitar essa coisa de olhar para as pessoas, sou obrigado a abrir a porta e rua! Pois muito bem, vou ajeitar milimetricamente meu chapéu panamá para que fique bem na altura dos olhos. Assim cuido mais por onde piso e me preocupo menos com essas caras horríveis, miseráveis. Porque as gentes estão mesmo miseráveis, embora bem vestidas e bem nutridas. De olhos para o chão encontro os olhos e o cheiro dos mendigos, que são muitos, muitos os que vivem nas ruas e me exigem privacidade. O sujeito gritou: o quê eu estava olhando? Ora, pensei, olhando para o chão, para os pés sujos que me xingavam, com um x insuportável para a situação pública na qual nos confrontávamos. Eu olhava para as lajotas das calçadas, para os troncos das árvores enquanto atravessava alguma praça; olhava para algum espaço vivo coberto de grama viva ou semi-viva, tal qual as pessoas. E o homem não parava de me insultar porque eu não conseguia me mover. Paralizei tonto com o chulé gasto de toda aquela cena de comida no chão, cachorro de coleira, plásticos e papelões, uma garrafa de água e outra de coisa mais ardente, paralizei com aquela exigência de privacidade. Isso ficou acontecendo por uns três ou quatro minutos, talvez, não sei. Então, gritei: gritei para que fosse à merda. Que se quizesse a sua tão querida privacidade que fosse se alojar entre quatro paredes. Que não tínhamos privacidade, que esse conceito era uma furada, uma tentativa de nos deixar calmos enquando a máquina do capitalismo nos atropelava,  a todos! E acrescentei furioso: mais a mim, certamente, do que ao senhor! Portanto, não me fale em privacidade, não me fale em guardar seus órgãos sob a proteção da pele, não me fale que está com fome, que não agüenta mais, que sofre, que está em perigo, não me fale de perigo e privacidade, não seja mais um déspota a me apontar os próprios pés fedorentos como o centro do universo. Cansei.
O homem levantou-se, olhou-me profundamente, olhos de mel, meu deus! Ele disse. Vou te matar, seu desgraçado!! E agarrou o meu pescoço com suas unhas de terra.
Lutamos, lutamos, lutamos até ficarmos, os dois, lado a lado, na calçada. Observados em nossa privacidade por uma multidão de curiosos apáticos e burros. 
Olhamo-nos. Cumprimentei-o. Ele a mim. Fui trabalhar, assim, sujo, despenteado, suado, nem derrotado nem vitorioso. Saí de uma batalha para a guerra e que viessem os chefes, colegas e comentários,  hoje tudo poderia acontecer porque muita coisa estava fazendo sentido, muito sentido.