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domingo, 12 de junho de 2011

Me fiz de papelão:

Eu sou de papel e tenho aparelho digestivo. Estive entre pigmeus por segundos e suado levantei da cama para ir ao banheiro. Eu tive dentes também e vontade de comer as frutas, as ervas, ovos e massas, grãos e tudo que cheirasse bem e fosse colorido e produzisse alguma sensação ao toque. Depois, com tantas escovações nos meus dentes dentro da minha boca de papelão, eu entendi que tinha mãos e força. E te tanta força minhas gengivas começaram a encolher e fiquei com medo de ficar sem dentes e ficar sem instrumento para a minha vontade de comer, a única que dia após dia me fazia sair do meu sonho de pigmeus. Resolvi procurar um dentista. Antes de ser de papel eu comecei a pagar um plano de saúde. Estou a pagar saúde após saúde. Meus dentes me fizeram procurar pela segunda vez na lista de credenciados. Mas a lista de credenciados não tem nenhum dentista. Pigarro em movimento. Estou com uma garganta também. Essas sensações eu conhecia do tempo que eu tinha um corpo cheio de órgãos e que de tanto desenhar consegui fazer de papelão, mas a fome eu nunca consegui desejar de papelão, tampouco a comida. E comida é tão variada, que tem algumas que precisam de dentes e tive que desenhar dentes parecidos com aqueles que eu conhecia e desenhei, para o infortúnio da gula e da força, as gengivas a fim de fixá-los em algum lugar. Contudo, mesmo estando de papelão eu me sentia agitado e preocupado. Na verdade, me preocupava cada vez mais com o material que me fazia material. Tive vontade de correr por aí num dia de chuva e não pude, pois uma vez molhado, praticamente estaria morto, no mínimo completamente desengonçado, pronto para virar papel machê. Estive na praia e nada de banho de mar. Quis encontrar uma pessoa e dormir com ela; encontrei, mas eu estava muito diferente daquilo que alguém poderia imaginar e desejar para dormir junto. Desejei conversar, desejei estar perto para falar sobre as coisas que eu fazia, sobre aquilo que pensava, desejei conversar para ouvir o que os outros pensavam e faziam, queria ouvir histórias, entender de amizade. Depois do interesse inicial que certas pessoas manifestavam pelo meu estado de papelão nada mais restava que um falso número de telefone anotado em alguma parte do meu material orgânico. Aliás, fiquei tatuado de números e nomes, somente nomes e números, não existia nada além das diferentes caligrafias, das marcas que todos deixavam para serem procurados e lembrados. Quando os procurei: não os encontrei. Uns por estarem muito ocupados, outros por estarem muito bêbados, outros ainda por não se interessarem mais por histórias de papelão. Vivi anos assim, agitando-me e tranquilizando-me à hora de fazer uma boa refeição. E quando os meus dentes não se sustentaram mais, foi que a vida começou a ficar insustentável. Aquela correria para juntar dinheiro para uma consulta com o dentista. Fui para descobrir que todos os meus dentes se despediam da minha gengiva porque a força dos meus pensamentos fazia com que eu cerrasse os dentes quase o tempo todo, eu de fato passava o tempo mordendo a angústia, mordendo as vontades, mordendo essa diferença que eu mesmo produzi. Mordi tanto, mas tanto e tanto que os dentes também lascaram e dos dez dentistas que consultei procurando entender o por que dos meus dentes estarem em revolta, foi o sexto que disse que eu precisava era de um profissional para conversar. Profissional para conversar, guardei na cabeça achando aquilo tudo muito estranho. Comecei a prestar atenção nas coisas de ser de papelão e percebi que eu exigia desse meu estado de papelão muitas das coisas que eu tinha quando estava em outro corpo. Mudei de material, mas não havia mudado minha ideia de materialidade. Eu poderia continuar sem mudar o sentido do entendimento? Dormi e acordei por mais dois anos antes de sair correndo num dia de chuva. 

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