Comedor de passado.

Todo dia se alimentava de uma tela, um desenho, um prêmio, uma charge, uma música, um texto, um bolo, arroz e feijão, até do espumante que ainda era champagne quando tomou pela última vez. Um pouquinho por vez quando estava sozinho, para dar conta de todas as manhãs que haveria de despistar. Em companhia, às vezes se punha a apresentar detalhadamente o curriculum vitae. De uma vitae gulosa de passado. 
Mas eu fiz isso e fiz aquilo, eu sou isso! portanto, mesmo que agora eu não saiba muito bem o que está acontecendo, eu sou bom, quase um gênio. Onde estão as minhas coisas, minha vontade? porque eu tenho as idéias, eu tenho tudo aqui dentro, mas eu não tenho tempo de fazer nada porque eu tenho que me organizar, meu tempo todo aqui com esse computador que não funciona e, inacreditável, duzentos e noventa reais e os caras me enganaram, sim porque não arrumaram nada, trocaram seis por meia dúzia e eu sem poder fazer nada, absolutamente nada, sem dormir, tentando fazer essa minha vida máquina funcionar. Não, tudo vai dar certo, vou conseguir dinheiro e nós poderemos sair, outros lugares bem distantes desses antros que tu costumas habitar. Aliás, eu te amo e não quero que fiques estragando teu corpo por aí e além do corpo tem o jeito que tu ficas, agressiva, selvagem mesmo, falando coisas que eu duvido que sejam pensadas. Não adianta dizer que é isso mesmo que tu pensas, não é possível. Eu sei que não é possível e a verdade é essa. Então, jura que não vamos mais encher a cara, jura! Eu quero fazer muitas coisas e eu vou conseguir, eu também consigo as coisas e tu vais ver, eu vou, eu vou, eu vou. Comer um pouco mais desses desenhos que eu fiz há cinco anos, dessas telas que vendi no exterior há dez, mas... como o tempo passa e a gente fica meio estranho, meio apavorado. Acabou o gás e eu cozinho perfeitamente no micro-ondas, tu tens preconceito com comida feita no micro. Tem preconceito e não adianta querer argumentar que os legumes ficam borrachudos quando cozidos por aí, dá para fazer tudo. Sim, vou procurar algo para esquentarmos a água. Gosto de plástico?... eu não estou sentindo gosto nenhum. Verdade, seria bom poder fritar um ovo, eu aceito, depois eu te pago.